Certa vez, quando vimos necessidade de deixar as coisas um pouco mais claras, ele se abriu comigo, mostrando um lado mais frágil e escuro. Sim, pra deixar as coisas mais claras ele me mostrou a escuridão. Bingo!
Lembro que no momento me senti privilegiada em tomar conhecimento de mais uma face daquele garoto tão obviamente do bem. Ter ciência daquilo não o tornava vulnerável a mim e ao mundo, pelo contrário, engrandecia ainda mais sua existência perante o Universo. Com aquela postura ele não me bloqueava ou afastava, como temia. Ele me protegia, me dava noção geral de tudo e opção de escolha: ele fazia a roda girar sem necessidade de adicionar óleo quando tudo já tivesse travado. O óleo era o próprio verbo.
"Sem o dia, não existe a noite. Sem a noite, o dia não chega." Era o que papai dizia quando a gente queria que o dia durasse pra sempre nos finais de semana porque a gente tinha medo do escuro. "Um não existe sem o outro e essa é a grande beleza da vida." Papai completava com um ar mais filosófico enquanto pra gente, na condição de moleques, era suficiente entender que ainda bem que existia a noite, porque só assim o dia chegaria de novo. Isso a gente entendia. E passamos a ser amigos da noite também. Se ela existe, por que vamos nos ausentar de suas possibilidades? E brincávamos de esconde-esconde, de casinha do terror, monstro da bananeira, contávamos quantos vagalumes passavam por nós, descobríamos a delícia de um banho de piscina noturno e como era muito divertido a contação de história de medo embaixo dos lençóis, onde ninguém podia ver ninguém, apenas ouvir e imaginar. E quando chovia? Quando chovia era melhor ainda. Ficávamos todos ali na varanda olhando os raios no céu, ouvindo os cachorros uivando, os sapos tagarelando, os pingos grossos fazendo um barulho no telhado que nem que eu viva mil anos eu posso esquecer, as infinitas partidas de ping pong e todos nós cantando juntos acompanhados do violão de papai tão afinado. Com o tempo viramos amigos da noite. O jogo virou. Foi preciso até um freio pra que a gente continuasse aproveitando o dia sem perdas e danos. O danado do equilíbrio. Os opostos complementares.
Ter consciência sobre si é um caminho que nem todo mundo busca por medo de se ferir, por medo do desconhecido, de esbarrar com algo que pense não dar conta e acaba escolhendo o trajeto mais fácil. Uma morada embaixo do sol, a ilusão de ter as ideias sempre bem claras. Acontece que sol demais queima. Sol demais dói a retina e no fim vira breu. Um breu forçado. Uma dor adiada e maquiada que vem mais forte. Tudo que vem de supetão causa um solavanco mais intenso e sem direito a negociações. Ora, antes a gente tivesse apertado a mão do breu desde o início e encarado ele não como um inimigo, mas como um aliado. Somos feitos dessas nuanças, ninguém escapa pra sempre dessa condição: somos o que somos. Somos luz e solidão. Yin Yang. Sagrado e mundano.
Hoje tudo faz sentido. Papai que sabia das coisas. E isso sempre viveu e existiu dentro de mim, principalmente quando sofro e enlouqueço de noite pra clarear e ser lúcida de dia. Eu vivo sabendo que é assim, que eu não preciso morrer, que crescer e se enxergar nua dói mas é importante demais. Curioso é que eu nunca tinha feito a ligação dos ensinamentos literais sobre escuro e claro de minha infância com o escuro e claro emocional. Foi preciso que um rapaz de barba ruiva me atentasse a isso, fosse luz na minha fresta.
Que transformasse o verbo em óleo pra fazer a roda girar harmonicamente.
Um comentário:
Tu sempre foste luz demais e teu pai temia que tanta energia solar alguma hora te derrubasse. Por que justamente por ser iluminada, você também sempre foi uma grande esponja, se deixava absorver pelos problemas de todo mundo e se não tivesse noção que o escuro existe, talvez pudesse não suportar. Mas sempre fostes muito generosa e amiga e pelo visto atenta a essas questões energéticas. Tirou de letra, minha querida! Um feliz ano novo!!
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