segunda-feira, novembro 30, 2015

Func, Shfum, Xero

Podia ser uma língua aborígene, não fosse tão mais simples. E ao mesmo tempo tão mais complexo. Um xero, pra mim, não é um cheiro. É todo o entorno, antes e depois. Um xero é ato e consequência de um cheiro. Ato: cheira-se até quase a exaustão (ou não) pra no futuro próximo poder lembrar e usar esse xero nas lembranças.  Consequência: carregar um pedaço da outra pessoa por onde for. Um presente que levamos sem pedir, coisa nossa. Mais íntimo que um beijo, visto que a outra pessoa não precisa, necessariamente, participar da ação pra que ela exista. Ato: cheira-se ao vivo. O momento é aproveitado e caso vire mais do que um cheiro, ele vira um xero. Consequência: depois da existência de um momento ao vivo, ai sim mandamos xeros. Mas a verdade é que isso é uma invenção da moça que vos fala. Acho um modo tão bonito de se despedir ou cumprimentar alguém querido que não acho justo que ele, o xero, se resuma apenas à palavra e fim. Tá todo mundo por ai enviando xeros apenas por força do hábito ou bairrismo, sem nada antes ou depois. Mas ai tudo bem também, cada um com seu cada qual, há quem diga eu te amo só porque ficou mais fácil e eu não tenho nada com isso.

E que os cheiros virem cada vez mais xeros que virem cheiros que virem xeros que virem uma conta que não fecha! Func, Shfum!

Até a última casquinha

O machucado se abre e sangra. Sangra de escorrer, como deve ser, como faço por onde. E se não for assim eu não quero. Arranco casquinha por casquinha só pra sentir a ardência de cada uma. Uma a uma. Fria e calculista na minha própria causa. Até não haver mais casquinha alguma pra ser arrancada e me restar, tão somente, ir embora. 

Amor é um negócio que não tem cabimento ser meia bomba. Dor também não.

domingo, novembro 15, 2015

Dormir junto



A maior questão sobre dormir junto com quem não se tem o costume de dormir junto, não é a noite, o ato, o quarto escuro e o se virar para o lado em um sono cuidadoso. [Sim, cuidadoso porque estamos ao lado de alguém que quase nunca estamos e pelas próximas horas, sem palavras, só tato ou uma busca por espaço.] 

A maior questão é que dormir junto significa irremediavelmente acordar junto, não necessariamente ao mesmo tempo, mas no mesmo lugar. Com o mesmo raio de sol informando na fresta da janela que o dia amanheceu. E agora? O relógio do celular avisa que já tá na hora de não estar mais ali, mas o corpo dele, morto ao seu lado, diz o contrário enquanto te puxa pra perto de olhos cerrados. É possível que alguém esteja te esperando ou quem sabe dormindo, dormindo com outra pessoa e sentindo a mesma coisa. Da parte dele também. Da parte dela. De todas as partes. Uma conta que não fecha - essa loucura humana que somos. O hálito que tá estranho, a intimidade que se cria e se recria, a quase dor na consciência - ou a completa falta dela. A hora de ir embora. Até logo, até breve. O restante do dia inteiro com a pessoa no corpo, no cabelo, no queixo, no peito. E todo o vácuo no restante, a reconstrução do dia com aquela ausência-presença.

Dormir junto é sim muito mais grave do que qualquer transa gostosa que termina no meio da noite.

quarta-feira, novembro 04, 2015

Um sertão no peito




Tenho o coração vasto e todo repartido. Tem parte partida em mil pedacinhos. Tem pedaço inteiro e árido feito o sertão, empoeirado, cheio de galhos e gados magros. Tem pedaço farto banhado por um rio de águas claras e bem fresco feito o Itaparica, lá junto do São Francisco e a outra banda pega fogo feito pôr-do-sol no céu sertanejo, de um laranjume e luminância que não têm igual em canto nenhum. Meu coração é feito de estradas, largas, de perder de vista, nuvens espalhadas de vários formatos: um coração brincante. É também igual vela que acende e apaga e acende e tem a chama mexida pelo vento e dança pra lá e pra cá em cima de mesa de madeira pesada e lascada pelo tempo dentro das casas de táipa, naquele lugar que ninguém foi, ninguém viu. Tem estrume também, que ora aduba, ora se deixa merdificar por tempos. Tem, com muita fome, vontade de percorrer todo o pedaço de mundo que puder, pra se repartir em mais pedaços, pra perder o fôlego e a condição de estar sadio e depois, miudinha, se dissolver e voltar a viver dentro de mim. Meu coração é um besta, é argila, é poço fundo, é arenoso, é liquido, é fluido, é travoso, tem de tudo. É um tudo. E o que ele menos é, é um músculo.