sábado, outubro 23, 2010

Eu tenho fome

Hoje acordei com flashes do meu sonho: a calçada da Boa Vista repleta de gente pedindo dinheiro, pedindo arrego, pedindo esmola, pedindo atenção, pedindo... Acho que foi um pouco do reflexo de ontem, que passei por aquelas ruas... com mormaço, chuva,calor, agonia,gritaria e gente com fome.

Hoje quando levantei, percebi que existia um trecho na minha cabeça. Não é poesia e nem nada, mas ela amanheceu de forma direta, como se já existisse antes. Chegou direitinho,sem insegurança, sem forçar a lembrança, sem palavra faltando e um pouco desconexa, sim. Mas na ponta da língua, como seu eu já tivesse escrito antes:

É tanta gente com fome
Que meus lábios prendem entre os dentes

É tanta gente com fome
Que meus laços pendem

Que meus lábios prendem entre os dentes
Que meus lábios pedem

e soltam

cheios de um sangue qualquer

E isso me fez lembrar um texto que fiz há muito tempo sobre o Centro do Recife com a visão de um menino de rua, já publiquei ele aqui, mas tá valendo rever:


No Centro do Recife

Acordei antes que o sol saisse e queimasse meus olhos quase sem sonhos. Percorri ruas e avenidas cobertas pela neblina de um dia que tava para chegar. Logo as padarias fariam cheiro de pão fresco e meu cheiro não era dos melhores. Já nem sei se meu desejo é comer esse pão ou o galeto que não para de rodar na "televisão de cachorro" (e minha).

Ando pelas ruas e ninguém me vê. Será que sou feio? Acordei mas ninguém me vê. Acordei e o mundo não acordou pra mim...


Já é dia feito, dia claro. Por entre sinais e avenidas meu dia vai correndo, a televisão para cachorro vai rodando, o pão vai saindo e aquela mulher vai chegando. Aquela mulher... Todos os dias ela vem nesse mesmo horário comprar o jornal.
Nunca entendi pra que comprar jornal, um bolo de papel sujo que mais parece jogo de repetição: bala perdida no Rio de janeiro, briga entre gangs, polícia matando gente inocente, homicídio em Casa Amarela, gente morrendo de fome no Coque,o náutico perdendo, show de nação zumbi no Marco zero e o horóscopo que é a mesma coisa todos os dias. Mas eu nem digo, ninguém me ouve mesmo. Aliás, ninguém me vê,né?

É hora do almoço e no Centro da cidade fica uma danação de gente gritando fora dos restaurantes o prato do dia, o pf que custa 5 reais. Eu nem sei se pra esse povo isso é caro ou barato.

Na ponte fica gente vendendo peixe nos saquinhos com água. Tem um menino galeguinho que sempre vai comprar, ele gosta de ver a briga das betas brabas. Tem outro que tira a hora do almoço pra ver o sol e acaba comprando um doce ou um pedaço de queijo manteiga.

Na padaria da Imperatriz sempre parece uma festa, meu sonho é comer aquela pizza de queijo que transborda. Já comi queijo uma vez, no natal passado ganhei uma bola de queijo do reino da senhora do jornal. Fui mordendo e mordendo até chegar na parte de ferro, rasguei minha boca e o gosto azedo do queijo misturou com o amargo do sangue. Nunca levei um corte com tanta felicidade no mundo!! Eu gosto de queijo, acho que gosto. Queijo é uma palavra engraçada,né? Queijo, queijo, queijo, queijo. O bom é que eu posso falar coisa besta que ninguém me escuta mesmo, aliás, ninguém me vê, né?

O sol começa a cair e eu gosto de ver a movimentação da turma saindo do trabalho. É tanta gente que fica ali na parada dos correios. É mulher com menino e sacola, é menina pedindo informação, todo mundo querendo chegar em casa pra comer... Queijo? (acho que diferente de feijão, arroz e macarrão eu só tou lembrando de queijo mesmo... assim.. de coisa diferente, né?)

Ai quando o sol vai simbora, as luzes do Recife começam a acender. Essa é a hora do dia que eu mais gosto. Como são bonitas as lâmpadas amarelas. É diferente daquela que eu vejo naquele prédio bem grande que tem do outro lado da ponte. Ah, falando nas pontes, essa é minha maior diversão. Atravessar todas as pontes contando quantos peixes a turma conseguiu pescar. Tem uns meninos que ficam contando quantos carros preto passam, mas eles só sabem contar até dez... Ai ficam repetindo a sequência dos números e nunca descobrem quem ganhou. Eu prefiro contar quantos patos (nem sei se são patos), aquele bicho branco que voa que nao é pato, ali do outro lado da Aurora fica um bucado, parado, dormindo.

Depois eu me canso. No final do dia minha canela não consegue ser mais fina e minha barriga nem tem graça. Mas eu vou dizer a quem? Ninguém me ouve mesmo, quer dizer... ninguém me vê,né?

O que me resta é dormir

Antes que o sol saia e queime meus olhos quase sem sonhos.

Carla Alencar.

3 comentários:

Felipe disse...

gostei do jogo com as palavras:

prendem, pendem, pedem...

tu sempre tem desse jogoe, e, pelo visto, até dormindo!

dormindo, domínio, domingo.. rs

Felipe disse...

e esse texto do Centro do recife é massa. Eu já tinha lido ele... só que quando você publicou, não deixou claro que era sobre um menino de rua e eu ficava viajando,não captei.Lembro que gostei do texto mas não achei que tivesse muita relação contigo e eu sempre acho que blog tem relação com o dono. Agora fez todo sentido. Legal essa idéia de escrever como se fosse outro, vou procurar observar isso daqui por diante.

Bruno disse...

tas melhor? te achei meio morgada no telefone! deve ter sido reflexo desse sonho... Gostei do texto e ele lembra uma conversa que a gente teve há muito tempo naquela padaria que tu gostava de ir depois do trabalho... ali na moeda! Tu lembra? tu toda revoltada com alguma injustiça que tinha presenciado no caminho para lá. não lembro o que era... e nem pq eu lembrei disso!

te cuida! te amo!