sábado, dezembro 08, 2012

Taberna do Leme


- O Leme é o meu lugar naquela cidade e você precisa conhecer o Taberna. promete que vai lá?
-Prometo.


Foram essas as palavras que você me disse naquela tarde de sol em Recife, dentro daquele quarto branco, suporte de pilhas e mais pilhas de morfina, tédio e horas, várias. Tua voz firme forçava uma tranquilidade e esperança enquanto teu corpo devastado pelos remédios fortes, cirurgias, cansaços e amputações insistiam no contrário.  E enquanto conversávamos amenidades, entre um e outro 'everythings gonna be alright'', meu coração só queria te dizer aquilo que você já sabe: o melhor tio do mundo acompanhado de uma tuia de lágrimas. Mas é que nessas horas dizem que é pra ser firme, forte e não demonstrar desespero. Que é preciso ser gente grande e que o outro não precisa de rostos tristes. de pena. de nada. Mas eu não sinto pena, sinto amor. E era isso que eu queria que você soubesse, de coração. Pois você tá acostumado a conviver com pessoas carregadas de orgulho e mágoas, um negócio que não serve de nada, aliás, serve sim, serve para acumular um tumor no meio do coração. 


Não sou feito as suas filhas, não sou feito sua ex-mulher, não sou como a minha mãe, que é tua única irmã e a pessoa mais teimosa que já conheci nessa vida. Elas são adultas demais pra entender que tem uma hora na vida em que poucas coisas valem tanto quanto o coração, o perdão, o resgate e um abraço, longo. E que quando o coração  pára e as pessoas se despedem, não há o que ser feito. E que lamentar é uma das coisas mais deprimentes e nocivas do planeta. Mas eu não consigo fazê-las entender isso e me sinto uma merda por tal motivo.

Hoje compreendo que nossa vida de encontros e desencontros pode ser dividida em duas partes: a parte do sorvete de sobremesa, cantoria madrugada adentro, viagens, sorrisos, piscina, me jogar pra cima, coceguinhas, mala maloca.

E pela parte dois, aquela em que comecei a chorar a tua morte. Chorei pela primeira vez quando repentinamente e sem o mínimo de cuidado da parte dos que já sabiam, eu soube da tua primeira doença. Chorei de susto, pois era menina demais pra compreender que meu Tio Cid tinha aids, a mesma doença de Cazuza, doença de TV.  Depois me tranquilizei, pois você já carregava o vírus há 20 anos e no lugar de coquetéis você se entupiu mesmo foi de drogas, cerveja e rock and roll - e nunca havia morrido. Chorei novamente quando você teve uma infecção e ficou internado no hospital. Te visitei algumas vezes, com cartinha e silêncios de amor. E depois novamente, com alguma outra complicação. É impressionante como a partir do instante em que soube do primeiro problema, todos os outros se desencadearam com tamanha velocidade. Até um mês antes de eu saber de uma coisa que existia há 20 anos, você nunca havia tido mais nada. E hoje estás aí, condenado à morte. E foi por ela que chorei novamente quando soube do teu câncer. E do buraco na barriga. E dos meses no hospital. Chorei tua morte quando tiraste teu sexo e sobretudo quando ouvi tua voz ao telefone como se nada tivesse ocorrido, com direito a risadas, planos, piadinhas, a preocupação de saber como eu estava indo no meu emprego novo e a audácia de me contar que havia acabado de fechar um negócio incrível e comprado um prédio inteiro. Chorei tua morte a cada ligação do meu pai, esperando a tal notícia, aquela que nunca veio.

Mas ontem sua voz já não era a mesma. Já não estava animado em ser proprietário de um prédio inteiro, não estava confiante nos remédios e a morfina já não suportava tua dor. Não fizeste brincadeira, não falaste que adorava ser internado (pois os remédios te davam alguma onda) e que a Cibele é chata mas tá te aguentando. Não me cobrou um texto meu. Não perguntou como estava o trabalho e não me chamou de mala maloca. Pelo contrário, adiantou o fim da ligação como quem adianta que uma notícia ruim está próxima, dobrando a esquina. À noite você proibiu que todos te vissem.

Pagou cemitério, casou no papel, vendeu os bens, dividiu pedaços de parede e concreto e de concreto mesmo só restou tua voz solitária ao telefone, falando essas coisas para a minha mãe, que friamente ouviu tudo sem uma lágrima de canto de olho. Tem vezes que a minha mãe é gente grande até demais. Tem horas que a pessoa precisa chorar, eu gritei ao seu lado enquanto ouvia ela te respondendo ao telefone "ahan, ahan, ahan". VAI SE FUDER. Gritei internamente, em vão. E fui embora.

Eu comecei a chorar tua morte ainda novinha e desde então não parei mais. Chorei tua morte por todos esses anos e você nunca morreu. Hoje, estranhamente, choro mas sinto-me tranquila no peito. 


 Só agora compreendo que ao menos pra mim, você não morre nunca mais.

6 comentários:

carlinha disse...
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Unknown disse...

"Só agora compreendo que ao menos pra mim, você não morre nunca mais."

e tem os mortos-vivos na vida da gente tb!

forte e lindo o texto, ainda que triste! ;*

Hermano disse...

Mais uma vez, emocionado. Força para nós!

carlinha disse...


'Mas eu não consigo fazê-las entender isso e me sinto uma merda por tal motivo.'

Ao menos esse texto já tem um Q de defasado. Acho q dona Ana entendeu o recado, que bom =)

Bruno disse...

texto foda, muito foda. Você sempre surpreendendo com as palavras. Saudade da tua luz.

Lê Fernands disse...


tão lindo que dá pra ver a áura por cima das palavras.

luz.