Faz muito tempo que gente grande diz que chão é sujo. Mãe, pai, bábá, avó, professor. Todos eles. Uma criança nunca acha isso, vive de trela pelo chão ou pela palavra chão. Palavra chão é palavra semente, aquela palavra que nem se tornou palavra, apenas idéias soltas saindo de uma boquinha miúda que carrega no short poeiras e vestígios que entregam logo por onde esse pedaço de pano estava descansando: no chão.
Uma criança só passa a achar que essa superfície-base é suja depois que cresce. Tanto a palavra chão, como o chão em si. Eu não. Não sei se não cresci ou se não mudei de opinião, mas o fato é que sinto uma vontade irremediável de chão, palavra ou superfície. Eu falo coisas que nem sei se existe, junção de palavras cuspidas do pensamento direto para voz, sem uma arquitetura, sem a fase da organização e tantas vezes t-r-a-v-o, o coração começa a esmurrar o peito, arregalo os olhos, respiro fundo e tento refazer, quando não dá certo, em alguns casos, eu calo tudo e opto pela palavra-lágrima, que acaba sendo uma foto etnografia para quem vê, sem precisar de explicações.
Quando eu era pequenininha, passeava pelas superfícies da palavra-chão e também pelo chão-superfície. Minha mãe me colocava para dormir lendo alguma historinha dos irmãos Green. Não sei se elas eram emocionantes a ponto de me levar para o chão todas as noites, mas acontece que todas as manhãs eu acordava toda espalhada naquela junção de cerâmicas marrom-clara.
A minha explicação sempre foi que o chão é geladinho e eu sou calorenta. Apesar de dormir em posições esquisitas e às vezes sentar durante o sono, sonâmbula eu não era. Era vontade mesmo, vontade de chão. Por que na sala de televisão eu tava muito acordada e era a mesma coisa: Todos sentados no sofá e eu lá no chão. Minhas brincadeiras sempre foram no chão. Seria impossível pular amarelinha em cima de uma cama. Corda, elástico e bolinha de gude também.
Tem uma coisa que eu nunca disse para ninguém e se eu fosse dizer de voz falada, tenho certeza que ia acabar na palavra-chão fora de conexão: Desde que me entendo por gente eu faço alongamento e dentro do alongamento sempre tem a parte em que você deita o corpo todo no chão e fica com o nariz grudado nele. Eu admito que sempre dou uma cheiradinha, e, o mais engraçado é que pode mudar o ano, mudar de sala e até mesmo de estado (físico e geográfico), que esse chão do “momento alongamento” tem o mesmo cheiro. Um cheiro que lembra tijolo, que lembra terra com chuva, que lembra semente, que lembra gelado, que lembra cansado.
Eu tinha (e tenho) a mania de testar superfícies e texturas. Cimento, azulejo, taco, brita, areia, lama, gramado. Em cada uma o pé sente uma coisa diferente. Tenho preferência por chão gelado. Acho azulejo, mármore ou granito uma beleza!
A vida inteira meus pés foram acostumados com chão-grama lá de Aldeia que às vezes espeta e molha por causa da chuva, mas ano passado eu me mudei para um apartamento e precisava decidir o tipo de piso dos quartos. O cômodo maior de todos era da minha mãe e já estava com um piso de madeira que é chique e caro. Os outros quartos estavam com um carpete velho e empoeirado que coçava os pés e esquentava demais, precisava ser trocado. Na hora eu disse: “-Porcelanato! É bonito e gelado.” O semblante da minha mãe foi de repreensão, como se estivesse revivendo um passado próximo. E decidiu que os “chãos” de todos os quartos seriam que nem o do quarto dela: de madeira, chique, caro e quente. Tentei convencer até onde podia que só o meu quarto ficasse com o piso de porcelanato, mas não teve jeito, segundo ela, ia parecer um circo.
- Mas eu sempre adorei circo...
Desde então, espero ansiosa pelo dia em que eu possa ser dona do meu próprio chão, no sentido literal da palavra.
- Mas eu sempre adorei circo...
Desde então, espero ansiosa pelo dia em que eu possa ser dona do meu próprio chão, no sentido literal da palavra.
Etnografia para a cadeira de Antropologia, novembro de 2008.
Um comentário:
tá lindo, lindo, lindo! :*
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