quinta-feira, outubro 22, 2009

Menina que passa



Inicialmente com esse nome e com versos que não agradaram o 'poetinha' Vinícius de Moraes, a primeira versão de "garota de Ipanema" era assim:


'Vinha cansado de tudo / De tantos caminhos / Tão sem poesia / Tão sem passarinhos / Com medo da vida / Com medo do amor / Quando na tarde vazia / Tão linda no espaço / Eu vi a menina / Que vinha num passo /Cheia de balanço / A caminho do mar'.


(Até 'sem poesia', ele é poeta. Incrível)


Logo essas linhas foram substituidas pela famosa girl from Ipanema que carregou na bagagem uma coleção com mais de 200 gravações, das quais a metade foram feitas exterior. Destacam-se como interpretes: Frank sinatra, Louis amstrong e Ella Fitgerald.


A canção foi feita para Helô Pinheiro (19 anos na época), uma moça bonita e anônima que passava todos os dias em frente ao bar Veloso, segunda casa de Tom e Vinicius. Curiosamente ela ficou sabendo da composição, apenas dois anos e meio depois, quando a música já era o estouro nacional e internacional, e, inevitavelmente, em uma entrevista para a extinta Manchete, Vinícius acabou revelando o nome da musa inspiradora.


'Ela é o paradigma do broto carioca, a moça dourada,misto de flor e sereia, cheia de luz e de graça',disse.


Um pouco tenso por desvendar o mistério até então necessário, pois na época não era comum homens casados e mais velhos escreverem músicas para jovens moças, Vinícius completou:


'Para ela fizemos, com todo respeito e mudo encantamento,o samba que a colocou nas manchetes do mundo inteiro, e fez da nossa querida Ipanema uma palavra mágica'.


Claro que depois disso, Helô apareceu em várias revistas,jornais, televisão, e, apesar de tal fama, por ciúmes do noivo,não foi a protagonista do * filme que levava sua música como título.


Passou os doze anos seguintes como dona de casa, cuidando de seus filhos, e, quem sabe,lamentando (ou não), o desejo (não realizado) de Tom :


'Oh, minha eterna Heloisa / Sou teu constante Abelardo / Tu és a musa perfeita / E eu teu constante bardo / Venha depressa,Heloisinha / Quem te chama é o Tom Jobim / Te espero na mesma esquina / já comprei o amendoim'.


Ela não apareceu.


* (Filme dirigido por Leon Hirszman e Eduardo Coutinho, e, que apesar do elenco ser composto por todas as figuras que de fato fizeram Ipanema, Vinícius como co-produtor musical, Chico,Nara, Caymme e Baden Powel dando o ar da graça, o longa conseguiu ser um fracasso. História e diálogos bobos em um roteiro que nada tinha a ver com a liberal e irreverente Ipanema de 67).


Curiosidade:


Garota de Ipanema estreou em Agosto de 1962, no show O encontro, como Tom, Vinicius, João Gilberto e os Cariocas. Ficou em cartaz por seis semanas na boate Bon Gourmet, em copa. A música era iniciada de uma maneira que nunca foi gravada:


João Gilberto: 'Tom, e se você fizesse agora uma canção / que possa nos dizer / cantar o que é o amor...''


Tom: '... Olha,joãozinho,eu não saberia / sem o Vinícius pra fazer a poesia...'


Vinícius em tom baixinho: '...Para essa canção / se realizar / quem dera o João para cantar...'


João com a cara séria, como se acreditasse no que dizia: '...Ah, mas quem sou eu / Eu sou mais vocês / Melhor se nós cantássemos os três:''


'Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça

é ela a menina que vem e que passa

no doce balanço a caminho do mar (...)'


Os brotos e a nata da malandragem iam ao mais alto dos delírios.



Fonte: Ela é Carioca - Uma enciclopédia de Ipanema, Ruy Castro.

terça-feira, outubro 20, 2009

Rapidinha




Lavando a louça depois de um almoço de domingo com a família reunida:


-Mãe, eu tava aqui pensando... por que não são duas esponjas ao invés de uma,hein? A pessoa lava os pratos todos bem engordurados com macarrão, carne... ai depois enfia essa mesma esponja dentro do copo. Vê que nojeira, a gente bebendo vestígios de feijão!

-Por isso que eu sempre lavo primeiro os copos e depois os pratos.


-Sim... ai significa que você terminou lavando os pratos e na próxima lavagem vai começar pelos copos, ou seja, deu no mesmo!

-Mas assim, eu limpo a esponja bem direitinho, carlinha, ai sai a gordura.

-Claro que ainda fica, né? Uma esponja dura um tempão, mesmo que limpe sempre fica uma gordurinha.


-Ah, então faz assim: Na tua casa tu compra duas.


Amo minha mãe.

Carla Alencar

terça-feira, outubro 06, 2009

Ana Luz


É dor a esquina da saudade onde botasse banca
Quero desbancar a dobradura
Puxar em linha a alegria vivente na tua macumba
Macumba de Ana, de lua, de índio
E de todas as Anas e Marias que você carrega
No peito, no Poço e na Pipa

Por que és, sem dúvidas,
A mais pura expressão de todos os ancestrais
Da época de paz e amor


Pé na terra, pá no chão

Cabeça, mão e coração

* Faço questão de assinar esse post como Anete que
significa "filha de Ana". Esse é o meu maior presente.
Um beijo pra Rara que também tem esse privilégio.

Anete Alencar

terça-feira, setembro 29, 2009

O romance de Doralice e Tião

Debruçando em raivas

Debulhando o feijão

Lembrando do beijo

Chorando a traição


Das promessas que fizeram

Diante de tanta gente

Na igreja de catente

Que fica lá do meu sertão


O véu e a grinalda

O vestido emprestado

Os conselhos de maria

O sapato apertado


Brôa, sangria e bode

Cajuzinho de festa

Bolo com boneco em cima

O bucho do povo sai da miséria


Lua de mel na pensão de seu Donato

é assim:

Mil botões em uma cama é jogo

Um por um

Dois por dois

Quebrou três

três pérolas falsárias

Na anágua de Doralice

Nem remédio e nem tolice

Com Tião num cola não


Por detrás da porta ouvem tudo

Dona marta, romeu e a costureira

Com um terço na mão

E um inteiro de inveja:

É barulho, é gemido

Pra durar a noite inteira


E a noite se fez de boba...


A geladeira até hoje a gente paga

A aliança em dez vezes sem correção

O aluguel da casa atrasado


E os mil pedaços de meu coração

quinta-feira, setembro 24, 2009

Sim


A arte do não também é poesia
A poesia do não também é arte

Tudo se inverte
Tudo se repete
Tudo se envolve

Tudo se destina
Ainda que volte



domingo, setembro 20, 2009

Quase


Coisa boa é sentir saudade
De quem a gente não conhece

(Imaginar cada dor e prazer)

E assim,
Quase do nada
Achar que sentiu
Sem tanto sofrer



São ou não
Real ou repente
De mim ou de tu
De nós e da gente

É que saudade boa, menina
É saudade sempre



Carla Alencar

domingo, setembro 13, 2009

Três dias


Olhos em estado de rio, represa

Avião vôa tão depressa
Em quase três horas de agonia e penar
Gotícolas torneirinha
Gotinhas de Carlinha
À se requebrar na planta da bochecha

Quando acaba parece sonho:

Bocado de brisa no vento frio e azul
Sol seco
Sal corando a pele
Prainha
Chopp da brahma
Wisque
Matriz
Atriz

Gafieira e o samba
Na ponta do pé mais bonito
De lilás e laranja o vestido
Desregrado a rodar

Da morena cacheada
Que me engorda e que me mata
Que me bota pra chorar

Cócegas

Saudade durante o abraço
Antes e depois do abraço
Pendurada nos ossinhos gentis que ele tem

Fica lá depois do túnel
Pavão,Pavãozinho
Melância e carinho
Sorriso em desalinho
Destinado a acabar...

... Nas águas de setembro
E as águas vão fazendo
O tempo inteiro parar

No Estado do Rio
Em estado de rio
Nos olhos do Rio
Nos olhos de rio

em mim



Carla Alencar

domingo, agosto 16, 2009

Azul Clara


Azul feito azul, azulzinho

um azul assim que nunca tá sozinho

azul claro de perfume de domingo

azul mar da retina do menino

azul que é verde, que é azul, que é azulado

no lado do peito, no peito ao lado

amora azul-morena

azul morena-aurora

azul madrugada

azul de toda hora





Carla Alencar

terça-feira, julho 14, 2009

Eu te amo?

"o amor, o sorriso e a flor... se transformam depressa demais" Vinícius de Moraes



Vai me roendo aos poucos.. primeiro a ponta dos dedos do pé, tirando pedaço do meu equilíbrio, o interior do meu umbigo e depois dá uma mordidinha no coração. (de leve). Vai sugando minha respiração de quando em vez e se não percebo, preciso de ar. Eu já disse certa vez que não sufoca, é leve. O ar é leve quando sem par, sem dois, sem essas coisas.
(um leve vazio você quis dizer,né?).
Não. Leve, leve. Ah, Maria... é inútil tentar te explicar. Preciso (acho que quero) ir. Um beijo, te cuida.

Não recordo com perfeição o que me afastou ou como afastei ela. Era inverno daqueles de abrir o guarda-chuva mesmo sem querer. De rodopios no pátio, águas no gramado, dedos em nó. Tempo de olhares e de olhos arregalados para dentro com um susto sutil de encantamento. Estávamos encantados, talvez fracos. Mas de um modo ou de outro, era ela quem andava debaixo de meu guarda-chuva preto enquanto meus braços a envolvia involutariamente. Não por necessidade, por querer. Mas de repente, em um vulto, o guarda-chuva fechou molhando a gente. Eu corri pra não estragar minha calça e até hoje não sei se ela ficou,se fincou ou partiu. A culpa foi decididamente da chuva.

* Um parênteses maior que o normal para um direito de resposta! É, até que ele me amou uma parcela entre as tantas que prometeu pelo olhar e pelos abraços afogados. Me deixou em partes, uma dissolvendo a outra em cada vestígio de não. E foi-se embora, de mim não teve piedade tampouco o perdão. (é que quando o coração toma o veneno prematuro do outro e logo é deixado na contra-mão, precisa correr e arrancar as sementes dos dias futuros que nem tiveram tempo de brotar mas que iam. É como um terreno perigo e arrancar sementes já plantadas em terra fértil, é um trabalho doloroso e às vezes inútil. Precisa ser com a ponta dos dedos, como quem tira espinho do pé. Agulha tortura, Pá espalha, mão consola e toca. Mão mastiga a outra num movimento genuino de perdão. Eu gosto de mão e na maioria das vezes a cura vem de dedos novos, frios e trêmulos, para que tudo comece outra vez.)







Ele me ama. Ele ainda me ama ( e muito). Talvez nem sáiba disso direito porque gosta de se enganar, mas no fundo eu sempre soube e o seu nervosismo só me fez confirmar: Riso a mais onde não há graça, palavras por cima da outra, mãos sem saber onde pousar e um breve silêncio de tchau. Apesar dessa certeza ter feito de mim moradia, por tempos temi o bastante que tudo isso fosse ilusão, mas não é, ele me ama sim! Ama sim, Maria. E eu nem sei se devia, mas admito que acho tudo isso muito mais interessante do que confuso.

Será que ela percebeu? Quando eu amo, sei mostrar até o osso. Quando finjo que amo, me esforço bastante e até me engano. Mas quando finjo que não amo fica tão óbvio... Pareço um pouco patético. Como é que pode, hein? Era melhor não ter fingido e nem desfingido. Era melhor não ter feito é nada. Tenho a impressão que o mundo inteiro notou e isso é doloroso demais para a minha vaidade. Sentimento de nudez e de segredos descobertos. Acho que agora, nem seis cordas e um copo graúdo de cachaça transbordaria essa danação até o fim.





Hoje a tarde, escapou um eu te amo até a pontinha da língua. Ficou meio dormente e quando graças a Deus voltei ao meu estado de frieza natural, engoli tudo e para despistar, perguntei se ele gostaria de um café bem quente. (Querida, ele esperava que você cuspisse tudo de uma vez, mas como não aconteceu, ele apenas disse que sim, aceitaria "um café bem quente com bastante açúcar,por favor"). Ora essa, porque só eu tenho que escapulir? por que não pode ser ele primeiro? Além dele ser o homem (e eu gosto que o homem seja mesmo o homem da relação), sempre que falo algo a mais, tenho a sensação de ter me saído a mocinha boba de um filme romântico. Por que ele sempre retribui com um sorriso curto e silencioso? Nunca com as palavras que ele deveria falar (ou que eu gostaria) de ouvir. Odeio isso, odeio!

Não concordo em ter que ser sempre o primeiro a dar o beijo, a pedir em namoro, a chamar para dormir na minha casa, a iniciar as preliminares para uma transa. Será que nem as palavras do que ela gosta de chamar de eu te amo pode vir primeiro dela? E além do mais não é por orgulho (um pouco talvez) e nem por pirraça (um pouco talvez) que eu não falo. Não sei se é por que não é ainda, por que quero ter a certeza que para ela é também (e por isso espero sua iniciativa) ou se é por que simplesmente sou tímido demais. O pior de tudo é saber que ela também pode usar exatamente essas mesmas justificativas ou desculpas,se assim preferir. Mas como tudo sempre sobra para mim, dessa vez eu me sinto em vantagem. Não que isso seja um jogo, mas de repente até é. Um jogo besta e desnecessário que chamam de amor. Eu preferia que não existisse nenhuma dessas etapas, que a gente amasse sem precisar saber que o nome é amor, que a gente não se preocupasse com todas essas regrinhas, que transasse quando tivesse afim, e, que se algum dia chegasse ao fim, terminasse sem precisar dizer que terminou. Mas ela gosta de complicar tudo e eu absurdamente gosto dela. Pronto,disse. (Então diz pra ela também!). hmm... Não.



"só mesmo sendo um tonto para ter acreditado que te colocando no lugar dela, eu ia esquecer o que restou. Sobras imensas, nem cabe em mim direito. Mario Quintana cansou de dizer que você não só não esquece, como lembra ainda mais. Infelizmente preciso concordar com ele. Gostaria que o fato de ser você quem me afoga de carinhos, de beijinhos e de surpresas bregas de amor, fosse o suficiente para achar que és a mulher da minha vida. Pelo simples fato de me dar tudo que eu gostaria de receber dela, em vão.
Não precisa me agradar assim. Não vai adiantar. Não tem a ver com merecimento, eu mereço sim. Mereço os bombons,o jantar e muito mais. Mas não de você. Vê se me deixa e me poupa da humilhação de te deixar, de inventar mil desculpas por não mais te querer. Lembra daquela vez que eu disse que te amo? Esquece. Me esforcei para que fosse verdade, você é uma pessoa bacana, mas nunca deixei de amar aquela. E por mais que eu tente, tenho a impressão que nunca vou deixar". Pronto, preciso criar coragem e dizer isso para ela, Maria. Preciso ser curto e grosso para não voltar atrás, mas toda vez que eu tento sou abordado de uma forma que me dá um nó bem no centro da garganta e sou envolvido por uma onda gelada de culpa. Sinto um carinho muito grande, ela é maneiríssima,moderna, inteligente, boa de cama e além de tudo, a gente tem muita coisa em comum: Gostamos de sair para os mesmos lugares, temos os mesmos amigos, assistimos aos mesmos filmes e tudo mais. Seria uma burrada deixar tudo pra lá e é por isso que vou levando. De repente, amar de verdade outra mulher não seja o bastante para reconquistá-la ou para viver infeliz por ai sozinho. E eu também sou covarde demais para admitir tudo isso que eu disse acima. Para mim, no fundo tá tudo certo, sempre tá. Se isso é uma crise, vai passar.


Carla Alencar

domingo, maio 10, 2009

Ela



No mercado de Casa Amarela
cuzcuz, galinha cabidela
Cerveja gelada
um samba do nada
a mais linda é ela

Escondidinho de charque
bóbó e baião
tempero prendado
é só coração

Um trago, dois tragos
no cabelo, mil cachos
a voar por ai

Tato e olho
canga e óleo
manteiga e alho refogando na panela

é de mim, é dela
é com dor, é sem dó

Minha mãe é uma belíssima mulher vestida de sol

Carla Alencar

quarta-feira, março 25, 2009

Fundo

Meu centro de tudo
ponto fundo no mundo
giro fora do chão
um abraço em plutão

O que de tão perto
pintou distante
sem foto na estante
na parede
no instante

presente em casa passo
cada laço
(na mão)
feito uma reza
uma crença
um crime
uma sentença

pé na grama
grão na lama
chuva seca no quintal
chuva escorrendo
tempo escorrendo
eu escorrendo
em mim

enfim
o drama
a dama
a noite
a cama

Acordou
No sonho eu sou, madrugada
de dia recordo

Carla Alencar

sexta-feira, março 20, 2009

Desperta


carrega
condiciona
liquidifica
repara
ventila

dor

Carla Alencar

quarta-feira, janeiro 21, 2009

Eu feto

A vida ficou tão pegável que nem sei se vou ou fico
sem foto, só fato. Um fato atrás do outro
fato aqui, afeto querendo, feto em mim
eu feto
eu feto depois, fato. Por fim afeto
sempre fui do 'por fim'
feto e fato não passaram por mim
e agora o feto ficou grande demais
pra me caber

é fato, enfim, afetou

queria assinar que nem Vinícius, algo do tipo
Oxford, 1946
Tem um que é meu predileto, ele quase humilha,
é o soneto de separação que foi feito nessas condições de assinatura:

Oceano Atlântico, a bordo do Highland Patriot, a caminho da Inglaterra, setembro de 1938.

Não sei se vou comseguir
não sei se vou
não sei
não

sei.

Carla Alencar, verão de 2009.



sábado, dezembro 20, 2008

Lá do alto


Pipa, voa, pipa
Voa, pipa
Pipa voa
Cerol, cordão, cerol, cordão
Sorriso menino
Sorriso na mão
Pipa correndo céu
Correndo céu
Caindo céu
Pintando céu

Menino correndo chão

quarta-feira, dezembro 17, 2008

Poesia no jardim da filosofia



'Pessoas desmancham quando muito.
Quando não se quebram ao meio ou em pedaços.
Pessoas dissolvem aos pouquinhos
Quando dá tudo certo.
Ou então se arrebentam por dentro ou por fora.
Pessoas às vezes explodem em tumores.
Quando não murcham devagarinho.
Pessoas dissolvem no chão'

Viviane Mosé





* Ai vai uma homenagem mais que merecida para a palavra cuspida dos olhos de viviane ,que, hoje, me proporcionou momentos de puro êxtase, fascínio e nostalgia de mim mesma.


quarta-feira, novembro 26, 2008

Vontade de chão




Faz muito tempo que gente grande diz que chão é sujo. Mãe, pai, bábá, avó, professor. Todos eles. Uma criança nunca acha isso, vive de trela pelo chão ou pela palavra chão. Palavra chão é palavra semente, aquela palavra que nem se tornou palavra, apenas idéias soltas saindo de uma boquinha miúda que carrega no short poeiras e vestígios que entregam logo por onde esse pedaço de pano estava descansando: no chão.


Uma criança só passa a achar que essa superfície-base é suja depois que cresce. Tanto a palavra chão, como o chão em si. Eu não. Não sei se não cresci ou se não mudei de opinião, mas o fato é que sinto uma vontade irremediável de chão, palavra ou superfície. Eu falo coisas que nem sei se existe, junção de palavras cuspidas do pensamento direto para voz, sem uma arquitetura, sem a fase da organização e tantas vezes t-r-a-v-o, o coração começa a esmurrar o peito, arregalo os olhos, respiro fundo e tento refazer, quando não dá certo, em alguns casos, eu calo tudo e opto pela palavra-lágrima, que acaba sendo uma foto etnografia para quem vê, sem precisar de explicações.


Quando eu era pequenininha, passeava pelas superfícies da palavra-chão e também pelo chão-superfície. Minha mãe me colocava para dormir lendo alguma historinha dos irmãos Green. Não sei se elas eram emocionantes a ponto de me levar para o chão todas as noites, mas acontece que todas as manhãs eu acordava toda espalhada naquela junção de cerâmicas marrom-clara.


A minha explicação sempre foi que o chão é geladinho e eu sou calorenta. Apesar de dormir em posições esquisitas e às vezes sentar durante o sono, sonâmbula eu não era. Era vontade mesmo, vontade de chão. Por que na sala de televisão eu tava muito acordada e era a mesma coisa: Todos sentados no sofá e eu lá no chão. Minhas brincadeiras sempre foram no chão. Seria impossível pular amarelinha em cima de uma cama. Corda, elástico e bolinha de gude também.


Tem uma coisa que eu nunca disse para ninguém e se eu fosse dizer de voz falada, tenho certeza que ia acabar na palavra-chão fora de conexão: Desde que me entendo por gente eu faço alongamento e dentro do alongamento sempre tem a parte em que você deita o corpo todo no chão e fica com o nariz grudado nele. Eu admito que sempre dou uma cheiradinha, e, o mais engraçado é que pode mudar o ano, mudar de sala e até mesmo de estado (físico e geográfico), que esse chão do “momento alongamento” tem o mesmo cheiro. Um cheiro que lembra tijolo, que lembra terra com chuva, que lembra semente, que lembra gelado, que lembra cansado.

Eu tinha (e tenho) a mania de testar superfícies e texturas. Cimento, azulejo, taco, brita, areia, lama, gramado. Em cada uma o pé sente uma coisa diferente. Tenho preferência por chão gelado. Acho azulejo, mármore ou granito uma beleza!

A vida inteira meus pés foram acostumados com chão-grama lá de Aldeia que às vezes espeta e molha por causa da chuva, mas ano passado eu me mudei para um apartamento e precisava decidir o tipo de piso dos quartos. O cômodo maior de todos era da minha mãe e já estava com um piso de madeira que é chique e caro. Os outros quartos estavam com um carpete velho e empoeirado que coçava os pés e esquentava demais, precisava ser trocado. Na hora eu disse: “-Porcelanato! É bonito e gelado.” O semblante da minha mãe foi de repreensão, como se estivesse revivendo um passado próximo. E decidiu que os “chãos” de todos os quartos seriam que nem o do quarto dela: de madeira, chique, caro e quente. Tentei convencer até onde podia que só o meu quarto ficasse com o piso de porcelanato, mas não teve jeito, segundo ela, ia parecer um circo.

- Mas eu sempre adorei circo...

Desde então, espero ansiosa pelo dia em que eu possa ser dona do meu próprio chão, no sentido literal da palavra.






Etnografia para a cadeira de Antropologia, novembro de 2008.

sexta-feira, novembro 21, 2008

Maria


Maria de todo dia e noite

Maria, minha maria nossa

De olhos abocanhando o mundo

De sorriso olhando de lado



De admiração, de amor, de.




Entre todas, A Maria.




Carla Alencar

quarta-feira, novembro 05, 2008

Gelo baiano


O gelo, de tão baiano, não sai do lugar.
Carla Alencar

terça-feira, setembro 30, 2008

Rapadura

Ontem, eu recebi um pedaço de rapadura vinda de Juazeiro.
Na hora, peguei o presente como se tivesse segurando ele com o pensamento.
Fiquei intacta por alguns minutos, e, aquele tablete doce me trouxe uma lembrança que tava perdida em algum pedaço da minha cabeça: Meu avô.
Vôvô é Amazonense e morou durante muitos anos em Farias Brito, interior do Ceará. O que a rapadura tem com isso? Tudo! Quando vôvô ia de temporada lá pra casa, ele sempre levava umas dez barras de rapadura e alfenim pra mim que duravam bem um ano!
Como eu era pequena, era ele quem "quebrava" o doce. Era um ritual danado.
Parece que lembro como se fosse hoje dele gritando, ainda com força: "Cabôcla, chega aqui!"
(Essa era a forma carinhosa que ele me chamava e me chamou até o leito de morte,segurando na minha mão)
Quando eu chegava junto, ele tava amolando o facão em uma pedra bem grande que tinha por ali...
Depois colocava o tablede doce em cima da mesa rude de madeira e danava a quebrar em vários pedacinhos, todos feitos para mim. Meu sorriso ficava largo e eu voltava pra brincar pinotando por entre as britas e gramas do quintal.
Essa é, sem dúvidas, a lembrança mais doce que tenho do meu avô!

sábado, setembro 06, 2008

Enquanto isso...


Eu tou perdendo o meu amor
Eu tou perdendo o meu amor
Eu tou perdendo o meu amor

Eu tou perdendo o amor

Repetiu a tristeza da menina
enquanto voltava pra casa

(Depois de alguns segundos silenciosos...)

Não, não!

Eu tou ganhando o meu amor próprio
e, quem sabe assim, o amor dele.




*Continuou pedalando enquanto o vento secava suas lágrimas cansadas.





Carla Alencar

terça-feira, julho 15, 2008

O que falta, não completa. O que sobra, apodrece.


A dor melada em amarelo
Do povo sem chinelo
Faz nas poucas batidas do peito semi-parado
Roupas para um verme:
O verme dos homens do mundo

Dos homens de relógio e caneta

É uma carniceira olhuda, gente-animal
Apanhando todos os dias
Gritando no próprio eco


É que os homens preferem ouvir rock
As moças, passear pelo shopping...


E os mundos seguem em uma eterna desordem forjadamente caduca.


sábado, julho 12, 2008

Gramática-dramática

Não sei o que me deixa mais doente: concerteza ou agente.

Com certeza: A gente.